segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Jangada de Pedra - José Saramago

 José Saramago (1922-2010)
(Por Rogério Camargo)
 
Jangada de Pedra, de José Saramago, romance publicado pela primeira vez em 1986, é uma obra na qual o escritor português relata uma verdadeira epopeia dos povos ibéricos que se separam geograficamente do continente europeu. Nesse romance, como é marca registrada de Saramago, a escrita assume um traço irônico, deixando transparecer toda a dúvida do escritor para com a estabilidade da União Europeia. Em 1986, ano da publicação do romance, diga-se de passagem, Portugal e Espanha aliaram-se à Comunidade Europeia, daí esta obra de Saramago assumir o caráter de uma espécie de metáfora antieuropeísta. No vídeo a seguir, você confere uma entrevista feita com o professor Saulo Thimóteo, mestre em estudos literários e especialista na obra de Saramago. O professor fala sobre algumas características gerais de Saramago e mais especificamente sobre a obra Jangada de Pedra:


O elemento desencadeador da história está centrado na ação de cinco personagens que se encontram em locais diferentes, quatro em Portugal e um na Espanha: Em Portugal, com Joana Carda riscando o chão com uma vara de negrilho, Joaquim Sassa atirando uma pesada pedra ao mar, José Anaiço passando a ser acompanhado por um gigantesco bando de pássaros, Maria Guavaira começando a desfazer um pé de meia e, finalmente, na Espanha, Pedro Orce batendo os pés no chão. A junção desses acontecimentos, curiosa e inexplicavelmente, dá início ao rompimento geológico dos Pirineus, fazendo com que Portugal e Espanha se desliguem totalmente da Europa e passem, tal qual uma descomunal jangada de pedra, a navegar pelo oceano afora, rumo a um novo destino:




O cão Ardent é também uma das personagens que vai compor a caravana composta pelas cinco personagns, uma vez que também sentiu o estalar da pedra. Os cinco personagens principais vão se encontrando aos poucos, primeiro Joaquim Sassa com José Anaiço, em seguida os dois encontram-se com o espanhol Pedro Orce. Aos três, junta-se Joana Carda, a qual une-se amorosamente a José Anaiço. Depois desses encontros, é a vez do cão Ardent aparecer, com um fio de lã azul constantemente à boca, e os conduzir até Maria Guavaira, que enamora-se por Pedro Sassa. Dessa forma, os seis iniciam uma viagem pelo interior da Península Ibérica a qual os levará à descobertas de novos horizontes, tanto pessoal quanto coletivamente.



José Saramago sempre foi um escritor consciente da realidade social do seu país e da sua gente, toda sua obra está marcada pela crítica à realidade nacional de um povo empobrecido e atrasado socialmente. Saramago parece acreditar, e isso pode ser comprovado em suas inúmeras entrevistas e debates no qual participou, que Portugal e Espanha fazem parte de uma outra face da Europa, menos valorizada. Daí a separação dos dois países.

A própria metáfora “Jangada de Pedra” remete a dois modelos de existência: um deles associado ao movimento, dinamismo, típico da jangada como meio de travessias marítima e o outro o da pedra como elemento estático, parado, que não vai para frente, por estar preso ao chão. A dinâmica do movimento está ligada à ruptura da península com a Europa, a partir de processos surpreendentemente inexplicáveis, como riscar o chão com uma vara, atirar uma pedra ao mar, pisar no chão etc.

Para Saramago, a ruptura da Península Ibérica com a Europa obrigaria os países que a compõe a voltar à sua verdadeira realidade, desvinculando-se da tentativa forçada de seguir os padrões pré-estabelecidos da Europa, cuja pressão exercida sobre Portugal e Espanha é claramente descrita neste trecho:



Como a península parece não querer parar, logo o caos se instaura entre a população, que começa a levantar questionamentos sobre a incerteza que paira sobre seu futuro. A jangada de pedra continua a navegar, indo em direção aos Açores, o que torna necessária a evacuação do litoral português e espanhol. Entretanto, antes de atingir o arquipélago açoriano, a península muda de direção, da mesma forma como começou a navegar: também de maneira inexplicável.


Para o renascimento de uma nova nação, uma nova Península Ibérica, Saramago vale-se do contraponto da emigração, mas não apenas do povo, mas de toda a terra que o sustenta. Certamente, essa imagem pouco agrada a um povo cuja história é marcada como a de uma nação colonizadora, geradora de outros povos, que no período das grandes navegações esteve no auge, entre as principais potências mundiais. Essa viagem coletiva é, no entanto, uma espécie de diáspora redentora, com o propósito de reconciliar Portugal com e Espanha entre si e, sobretudo, consigo próprias, de modo a apagar quaisquer vestígios de ressentimentos entre os dois países. Assim, a travessia serve também para encontrar um ponto de reforço de identidade dos países e seus habitantes.

O próprio percurso da península é confuso, ora em direção à América do Norte, ora em direção à África, ora em direção à América do Sul, até finalmente encontrar-se com a América Central. Esse encontro pode ser visto como um encontro consigo mesma, à volta às origens, com a sua própria língua. Nesse ponto, outro acontecimento inexplicável serve como maneira de o narrador celebrar a receptividade de Portugal com a Espanha, bem como o retrato dessa nova realidade. É a gravidez das duas portuguesas, Maria Guavaira e Joana Carda, fecundadas pelo espanhol Pedro Orce, agora simbolizando a união entre as nações, sem censuras ou julgamentos passados. Mas não apenas as duas estão grávidas, como todas as mulheres da península, fazendo com que a terra recebesse, muito em breve, entre doze e quinze milhões de novos habitantes.



O fio da narrativa conduz a um novo horizonte, ao encontro da luz, celebrando o triunfo da vida sobre a morte, representado pela fecundação em massa, anunciando aos habitantes um mundo novo de esperanças. A fábula se encerra com a morte de Pedro Orce, que morre dias depois, ao não mais sentir o tremor da terra. Seus companheiros, agora acrescidos de Roque Lonzano, andarilho da mesma cidade que Orce, decidem levar seu corpo para ser enterrado em sua cidade e assim o romance termina.


OUTROS PONTOS IMPORTANTES

Sobre o espaço na obra:

O espaço dos acontecimentos está circunscrito basicamente dentro da Península Ibérica, ainda que esta esteja em movimento, na sua jornada de afastamento do continente europeu. Em alguns momentos, porém, ela se passa também na Europa, quando do retrato das manifestações de apoio à causa ibérica, bem como as tensões políticas e sociais que lá aconteceram

Sobre o tempo na obra:

A narrativa é construída de forma linear, ou seja, há uma sequência natural do tempo em dias, semanas e meses. Mas em algumas vezes é possível perceber o narrador voltando no tempo.

Sobre o narrador na obra

O narrador saramaguiano tem como característica fundamental a ironia, mas é também poético e filosófico. Particularmente em Jangada de Pedra, em alguns momentos quando parece que o leitor está sendo guiado por um narrador onisciente, que a tudo já conhece por antecipação, logo se depara com um narrador que ainda não conhece os fatos que irão se passar, ou mesmo alguma características das personagens, descobrindo-as ou não, junto com quem lê.

Em outros momentos, o narrador faz o contrário, demonstrando já saber de acontecimentos futuros e antecipando-os ao leitor. Ou ainda, o narrador coloca-se dentro do texto como uma das personagens que habita nela, como, neste trecho:



Um dos recursos muito utilizados pelo narrador saramaguiano é a metalinguagem, ou seja, usa a linguagem para falar da própria linguagem, o texto para falar do próprio texto, ou a ficção para falar da própria ficção. O narrador conversa com o leitor, procurando fazê-lo entender que aquilo que está lendo não passa de ficção, uma história inventada. O vocabulário saramaguiano é vastíssimo e rico em erudição, refletindo, inclusive, sobre o próprio ato de escrever e o tratamento especial dado à linguagem, como demonstrado neste pequeno trecho:



Em se tratando de linguagem, um dos grandes méritos de José Saramago está justamente do trato que dá a ela. Sua escrita tem um estilo próprio, facilmente reconhecido pelo leitor que acompanha suas obras. Pode-se dizer que Saramago criou um modo próprio de escrever. Seus textos, como ele mesmo afirmava em diversas entrevistas, foram feitos para serem lidos em voz alta. Isso se dá por conta do caráter de oralização da escrita. A partir de seu romance Levantado do chão, publicado em 1980, seus romances não apresentam mais alguns sinais gráficos de pontuação, como o travessão e os pontos de exclamação e interrogação, estes últimos, apenas percebidos quando da leitura efetiva do texto, por conta do ritmo próprio que a narrativa tem. Os diálogos também se apresentam separados todos por vírgula, seguido da inicial maiúscula, que marca a fala de outra personagem:

Estão sentados, felizmente numa sombra de árvores, ele perguntou, Que foi então que a trouxe a Lisboa, por que razão veio procurar-nos, e ela disse, Porque deve ser verdade que você e os seus amigos têm parte no que está a acontecer, A acontecer, a quem, Bem sabe a que me refiro, a península, o arrancamento dos Pirenéus, esta viagem como nunca se viu outra, Às vezes também eu penso que sim, que é por nossa causa, outras vezes acho que estamos todos doidos, Um planeta que anda à volta duma estrela, a girar, a girar, ora dia, ora noite, ora frio, ora calor, e um espaço quase vazio onde há coisas gigantescas que não têm outro nome a não ser o que lhe damos, e um tempo que ninguém sabe verdadeiramente o que seja, isto tudo também tem de ser coisa de doidos, Você é astrónoma, perguntou José Anaiço, nesse momento lembrado de Maria Dolores, antropóloga de Granada, Astrónoma não sou, nem parva, Desculpe-me a impertinência, andamos todos nervosos, as palavras não dizem o que deveriam, são de mais, são de menos, peço-lhe que me desculpe, Está desculpado, Provavelmente pareço-lhe céptico porque a mim não me aconteceu nada a não ser os estorninhos, ainda que, Ainda que, Há pouco, no hotel, quando a vi na sala, senti-me como se estivesse sobre um barco no mar, foi a primeira vez, Pois eu vi-o como se estivesse a aproximar-se de muito longe, E eram só três ou quatro passos. Vindos de todas as partes do horizonte, os estorninhos desceram subitamente sobre as árvores do jardim.

Em Jangada de pedra, Saramago convida o leitor a fazer uma viagem, não apenas pelo oceano Atlântico, a bordo da jangada de pedra que se tornou a Península Ibérica, mas também pelas malhas do texto, demonstrando que este tem vida própria. Ao mesmo tempo, o leitor não escapa da ironia cortante do escritor que deixou em evidência a língua portuguesa ao mundo contemporâneo. Seu romance é um constante diálogo com a história, a filosofia, a sociologia, entre tantas áreas do saber, demonstrando o crítico atento de seu tempo, que foi Saramago.